Quando me formei na faculdade de História, há três anos atrás, mamãe cismou que queria me dar um presente de formatura. Eu não faço questão desse tipo de coisa, mas como já havia dado a ela o desprazer de não participar de festas de formatura, nem ao menos uma cerimônia de colação de grau, resolvi aceitar a oferta. Como eu podia escolher o que quisesse (até certo limite de valor, e contanto que tivesse a ver com o fato de eu estar me formando - meu pedido inicial de bonecos Marvel Legends foi negado), pedi a ela o livro mais caro, quer dizer, o livro que eu teria mais dificuldades em adquirir com meus recursos de rapaz recém-formado, um livro grande, imponente, organizado por um historiador de renome internacional, com uma capa chocante: o Livro Negro do Colonialismo. Anos depois de ganhá-lo, finalmente obtive o tempo e a estabilidade mental necessários para a leitura desta obra coletiva de 957 páginas.
Hoje em dia existem vários livros negros: do capitalismo, do cristianismo, dos Estados Unidos (que também já li), mas me parece que o primeiro foi o Livro Negro do Comunismo (que também tenho e hei de ler). Só para se ter uma idéia, este livro foi editado no Brasil pela Biblioteca do Exército, e tem um prefácio de um general das antigas dizendo: “Estão vendo, nós estávamos certos em perseguir e torturar os comunistas”. Não que o comunismo tenha sido um sistema impecável, muito pelo contrário, senão o seu livro negro nunca teria existido, mas historiadores de renome que escolhem escrever um livro negro do comunismo antes de um livro negro de diversas outras coisas muito piores como, por exemplo, o colonialismo, merecem uma resposta intelectual a altura. O Livro Negro do Colonialismo foi justamente produzido com essa intenção.
Os próximos a sentirem a fúria da ganância são os asiáticos. Indonésios, vietnamitas, chechenos, todo mundo ainda vai sofrer, mas nenhuma colonização na Ásia foi mais emblemática do que a atividade inglesa na Índia, principal colônia do império britânico durante séculos. Dois grandes capítulos explicam desde o início dessa dominação, como um empreendimento particular, até a luta de Gandhi e a retirada dos súditos da rainha. Na linha dos temas alternativos, há também um capítulo dedicado às travessuras dos russos no Cáucaso, que sustentam até hoje uma ferida difícil de cicatrizar na Chechênia, e uma análise da colonização japonesa, a única promovida por um país oriental, mas igualmente cruel.
A última parte do globo a sentir a presença dolorosa dos europeus foi a África, conquistada depois de sangrar bastante com o tráfico de escravos, e a área que mais sente até hoje os efeitos da colonização. Depois de um capítulo meia-bomba sobre a colonização árabe em Zanzibar, aparece uma das melhores partes do livro negro, um pequeno artigo sobre o apartheid na África do Sul, explicando suas origens e seu desenvolvimento – muito bem escrito e útil, já que eu nunca havia lido algo que tratasse especificamente este assunto tão importante. Confesso que, depois da parte dos massacres dos indígenas, esta foi a que mais me chocou – eu não tenho o menor orgulho de ser brasileiro, tenho até vergonha desse país onde nada funciona e todo mundo só está de olho no seu, mas se eu tivesse nascido na África do Sul, já tinha pedido naturalização em qualquer outro no mundo, não existe país com história recente mais vergonhosa. Logo em seguida, três capítulos abordam a colonização da Argélia, a principal colônia francesa – essa predileção se explica pelo fato do livro ter sido escrito majoritariamente por franceses. Os dois primeiros foram escritos pelo próprio Marc Ferro, organizador da obra, mas sua escrita é enjoativa e me decepcionou; já o terceiro abrange as independências de diversos países da África francesa, e é muito esclarecedor.
A penúltima parte do livro foi batizada de “O destino das mulheres”, e me pareceu meio apelativo para agradar um certo público. Chata e dispensável, é prosseguida por “representações e discursos” que aborda questões como o anticolonialismo, o racismo proveniente de ideologias dos povos que dominaram e aspectos culturais da colonização na produção de músicas e filmes. Há ainda um epílogo chamado “quem pede reparações, e por quais crimes?”, só para não terminar o livro assim, do nada.
O que achei do livro? Sensacional, de altíssimo nível, e muito útil, não só para minha vida profissional, mas para minha formação como cidadão. Esse é o tipo de coisa que todas as pessoas deveriam conhecer, para não ficar falando por aí besteiras calcadas em preconceitos. Acho que depois de um mês através dessas quase mil páginas, terminei a leitura como um ser humano um pouco melhor do que era antes.
Fernando, parabéns pela belíssima resenha e pelo fôlego para ler (ler mesmo, não só passar a vista) esta obra.
ResponderExcluirO livro deve ser realmente fora de série,e parece-me, está situado em uma " esquina" entre o conhecimento acadêmico e uma leitura prazerosa dedicada a um público não estudioso do tema.
O livro é isso mesmo que você falou, recomendado para todos, desde os doutores em história contemporânea até os curiosos e nerds em geral.
ResponderExcluirAinda este ano tento começar (e terminar) o do comunismo, que tem quase o mesmo número de páginas e, pelo que li há alguns anos antes de parar, até por volta da página 100, também é excelente.